Reprodução internet

E se fosse possível trocar de lugar com os mortos?

Dona Carlota era conhecida na pequena cidade por dois motivos: era devota fervorosa e uma fofoqueira incorrigível. Solteirona, passava os dias entre rezas e cochichos. Mas havia uma coisa que ela gostava mais do que missas: velórios.

Bastava o sino da igreja dobrar anunciando a morte de alguém, e lá estava ela, a primeira a chegar, com o terço na mão e a curiosidade acesa. Observava tudo: quem chorava de verdade, quem fingia; o tipo de caixão, a qualidade das coroas de flores, até o pó do café servido. Tudo virava assunto para dias e dias de conversa.

Foi então que chegou a notícia do falecimento de Dona Arminda.

Dona Arminda era o oposto de Carlota. Uma mulher simples, mas cercada de um certo mistério. Parteira, benzedeira, conhecedora de ervas e simpatias, ajudava a todos que a procuravam — sem cobrar nada. Diziam que lia cartas com precisão assustadora. Muitos a amavam. Outros a temiam. Dona Carlota, claro, estava entre os que a detestavam. A chamava de bruxa. Achava um absurdo que o padre permitisse sua presença na igreja. “Uma mulher dessas deveria ser excomungada”, dizia com raiva.

Ao saber da morte da “bruxa”, Dona Carlota mal conseguiu disfarçar a satisfação. “Não perco por nada esse enterro!”, pensou. Vestiu seu luto mais teatral, praticou a expressão de dor diante do espelho e partiu rumo ao velório.

A casa de Dona Arminda estava cheia. O caixão no centro da sala, cercado de flores e orações. Gente chorando de verdade. Carlota reparava em tudo, como sempre fazia. Chegou perto do caixão e encarou a falecida, pensativa.

“Já vai tarde, velha feiticeira… Vá direto pro inferno”, murmurou em pensamento, com desprezo.

Foi nesse instante que sentiu um choque forte na cabeça. Tudo girou. O chão sumiu. Escuridão.

Quando despertou, estava deitada, sentindo um forte cheiro de flores e velas. Tentou se mexer, mas seu corpo não respondia. Abriu os olhos — e levou um susto. Estava cercada de gente… e no meio delas, viu a si mesma. Ela, Carlota, de pé, com um terço na mão, observando o caixão.

Mas… como assim?

Com horror, percebeu que era ela quem estava dentro do caixão — ou melhor, estava no corpo de Dona Arminda. Era impossível, mas real. Estava presa no corpo da morta, imóvel, enquanto sua própria imagem viva se aproximava e, com um leve sorriso nos lábios, sussurrava mentalmente:

“Agora é você quem vai para o inferno. Pode gritar o quanto quiser… ninguém vai ouvir.”

O desespero tomou conta de Carlota. Gritava, mas sua boca não se movia. Suas lágrimas não corriam. Estava presa, condenada a ser enterrada viva dentro de um corpo que não era seu.

O caixão foi fechado. O cortejo seguiu até o cemitério.

Dias depois, a comunidade começou a notar algo estranho: Dona Carlota parecia… diferente. Mais gentil. Ajudava nas partilhas, fazia caridade, cuidava dos doentes. Dizia saber tratar males com ervas. Até começou a ler cartas, discretamente. Quem antes a evitava, agora a procurava.

“Parece até outra pessoa”, diziam.

E era.

A alma de Dona Arminda vivia agora no corpo de Carlota. E ninguém jamais desconfiou da troca. Apenas nós sabemos.

E a verdadeira Carlota?

Bem… dizem que, em noites silenciosas, se você passar perto do túmulo de Dona Arminda, pode ouvir alguém chorando lá de dentro.