Eu tinha dez anos, assim como meu irmão Simon. Mas a lembrança mais forte que guardo de Ricardo não era o seu rosto, e sim o som das botas batendo no parquêt do corredor. Havia um peso particular naqueles passos — um compasso de couro e madeira que sempre chegava antes da sua sombra na porta.
Ricardo entrou em nossa vida depois que papai “partiu” de vez. Com ele, trouxe uma nova ordem: não era disciplina, era silêncio. Um silêncio pesado, forçado, que se assentava sobre a casa como pó sobre a mobília. Mamãe, Clara, aprendeu a existir dentro dessa quietude. Nós, Simon e eu, aprendemos a observar.
Às vezes, o jantar era tão silencioso que podíamos ouvir o zumbido do transformador no poste da rua. E era nesse silêncio denso que a mão de Ricardo deslizava até o braço de mamãe, debaixo da mesa. Não era carinho. Era âncora. Víamos seus dedos ficarem brancos no garfo, seu maxilar se contrair antes de continuar a comer como se nada tivesse acontecido.
Um dia, voltamos da escola e encontramos a porta do banheiro entreaberta. A luz amarela recortava o chão do corredor. Sem fazer barulho, vimos mamãe diante do espelho, aplicando com precisão uma pasta clara sobre o hematoma que florescia sob o olho esquerdo. O estalar do estojo de maquiagem, ao se fechar, foi o único som do ritual. Recuamos em silêncio, como quem pisa em vidro.
À noite, a tia ligou. Ouvíamos sua voz aflita do outro lado da linha, e mamãe respondendo com monossílabos exaustos:
— Estou bem. Não é nada. Ele está mudando.
Mas nunca mudava. Apenas aperfeiçoava seu método.
Chegamos aos doze anos, e nossa mudança não foi de altura, mas de percepção. Deixamos de ser crianças assustadas para nos tornarmos observadores atentos de uma espécie perigosa.
Foi num sábado que a espécie decidiu intervir. Mamãe saiu para visitar a irmã. Ricardo esperou o barulho do carro sumir na estrada empoeirada, e então nos disse, com uma lentidão calculada:
— Hoje vou ensinar vocês a serem homens de verdade.
Saiu, e o silêncio que deixou foi ansioso. Voltou ao entardecer, trazendo duas mulheres. Uma vestia vermelho colado ao corpo, a outra tinha o cabelo escuro e desordenado. Os saltos delas tilintaram contra as lajes do jardim como uma dissonância brutal.
Dentro da sala, Ricardo empurrou Simon contra a mulher de vermelho:
— Vamos lá, um homem sabe o que fazer.
Simon congelou. O sorriso dela não tinha alegria alguma. A mão com unhas vermelhas se aproximou do rosto dele. O reflexo foi imediato: Simon chutou sua canela, arrancando um grito. Ao mesmo tempo, empurrei a outra, que tombou sobre o sofá rangente.
Antes que Ricardo reagisse, já corríamos pela escada. O estalo da fechadura do banheiro foi nosso alívio metálico. Sentados no azulejo frio, ouvimos os gritos de fúria ecoando pela casa, depois o carro dele partindo em violência.
O silêncio que ficou não era paz. Era vazio. Um silêncio errado.
Nos dias seguintes, fingimos docilidade. Respondíamos, obedecíamos. Ricardo acreditou que havia nos dobrado. E no seu orgulho, não viu nossas longas caminhadas pela floresta, nem os livros de botânica que consultávamos em segredo.
Na quarta-feira seguinte, montamos uma mesa no jardim. No centro, uma panela de barro liberava um vapor aromático.
— Fizemos um guisado de campo! — anunciou Simon, servindo o prato de Ricardo.
— Queríamos lhe agradecer — completei.
Ele comeu com apetite voraz. Elogiou a carne, o sabor especial dos cogumelos. Enquanto raspava o fundo do prato, perguntou:
— Onde encontraram esses cogumelos magníficos?
— Na parte úmida da floresta, onde crescem os melhores — respondeu Simon.
Sorri. — Mas é uma arte delicada. Algumas espécies são idênticas. Um pequeno erro, e o resultado é… fatal.
Ricardo nos olhou. Pela primeira vez, seus olhos não traziam desprezo. Apenas uma pergunta silenciosa. Então largou o prato, que se estilhaçou no chão. O corpo dele convulsionou, a respiração se transformou num gorgolejo.
Enquanto recolhia os cacos, expliquei:
— Mamãe já nos falou desses cogumelos: Amanita Phalloides. Mortais, se confundidos com os bons.
Ele caiu na relva, rosto azulado, corpo retorcido. Nós assistimos em silêncio, com interesse quase científico. E, no instante certo, nossas vozes romperam em gritos infantis, ensaiados, pedindo socorro para o padrasto que se “engasgava” no pátio.
A investigação foi breve. Duas crianças chorando sobre o corpo de um homem: um acidente doméstico. Nossas lágrimas, tão convincentes quanto o veneno nos cogumelos, encerraram o caso.
Quando mamãe voltou, já sabendo, não havia perguntas em seus olhos. Apenas uma exaustão imensa, como a praia depois que a maré recolhe os destroços. Sentamos ao lado dela no sofá gasto. Simon segurou sua mão direita, eu a esquerda. Pela primeira vez, seus dedos não estavam tensos. Apenas frios, mas tranquilos.
E no novo silêncio da casa — um silêncio sem botas no corredor — ficamos apenas respirando.
Nove anos se passaram. Nove anos felizes.
Remorso? Culpa? Nenhuma.
Só quem vive dentro, sabe.