O frio daquela noite não era comum. Não vinha pelas janelas nem pelas frestas. Era um frio que se instalava nos ossos… na alma.
Não costumo ouvir rádio, mas naquele dia, sem saber por quê, liguei. Entre chiados e estática, uma voz rouca irrompeu:
— Se você está ouvindo isso… saia de casa. Agora. Não sei por quê, mas aqui não é mais seguro. Saia. Agora!
Silêncio.
Depois, um som seco. Como se alguém também estivesse escutando… e desligasse o rádio ao mesmo tempo.
Não me movi. Há muito tempo deixei de reagir a avisos. Não por coragem, mas por cansaço. Não durmo direito há anos. Não é medo — são as malditas lembranças que me impedem.
Tudo começou numa viagem que eu jamais deveria ter feito…
Minha esposa estava sozinha em casa. Dormia tranquila quando ouviu a porta ranger, abrindo devagar. Sentiu mãos frias e ásperas tocando seu corpo. Pensou que era eu. Chamou meu nome.
Mas ninguém respondeu.
Quando tentou reagir, já era tarde. Ela viu, na penumbra, o impossível: uma figura com corpo de homem, rosto de bode… e olhos que não pertenciam a este mundo.
Ela não conseguiu escapar.
Voltei para casa dias depois. Ela me contou tudo, entre lágrimas. Eu… eu não quis acreditar. Na verdade, não podia acreditar.
Ninguém acreditou. Nem os vizinhos, nem a polícia. Nem mesmo Teófilo, meu amigo de trinta anos, do sítio ao lado.
Mas o monstro voltou.
Dessa vez, eu estava lá. E ele encontrou chumbo. Disparei sem pensar. O corpo caiu aos meus pés. O que matei não era deste mundo.
Enterrei sozinho aquela coisa. Não chamei ninguém. Transtornado, enterrei com ela a minha sanidade.
O inverno passou. Minha esposa adoeceu. Carregava no ventre um filho que ela dizia não sentir como seu.
Quando a criança nasceu… ela morreu.
O bebê chorava como um animal ferido. Tinha olhos inumanos. Pele manchada. Mãos deformadas, cobertas de pelos escuros.
Quis matá-lo. Juro que quis. Mas não consegui.
Criei-o como se cria uma praga: preso num barracão, entre trapos. Sem nome. Sem voz. Não era meu filho. Era uma maldição viva, que me lembrava todos os dias do que perdi.
Eu o alimentava. Trocava-lhe as roupas. E o trancava novamente.
Até que uma noite, já embriagado, ouvi uma voz rouca, magra:
— Pai…
Era ele. E algo dentro de mim… se partiu.
Não aguentei mais. Levei-o à floresta. Deixei um cobertor. Um pouco de comida. E fui embora.
Pensei: que o diabo o leve. Que a terra o engula sem deixar osso.
Mas dias depois, o vi pela janela. Uma sombra subia do morro. Andava mancando, torto. Arrastava algo.
Carregava o corpo de um jovem. Pendurou-o na minha cerca. E entrou pela porta dos fundos.
Parou diante de mim. Ajoelhou-se. Ergueu meu queixo com aquelas mãos monstruosas e disse:
— Pai… está com medo?
Não respondi.
— Olha… eu fiz isso pra você. Gosta?
Apontei, sem saber por quê:
— Sim, filho… estou vendo.
Ele sorriu. E antes de sair, disse:
— Ainda não terminei. Fica aí. Vou buscar mais.
E desde então… ele sempre volta. A cada noite, pendura mais um corpo. Me olha com olhos famintos, buscando aprovação.
Ontem à noite, disse novamente:
— Gostou, pai? Eu fiz isso pra você!
E eu… eu só acenei.
Porque já não há nada em mim que possa negar. Não depois de tudo. Não depois de lembrar que essa criatura não nasceu de mim… nasceu de um crime.
Os corpos, ele sempre leva de volta para a floresta. Não sei onde, nem por quê.
Cansado, decidi contar tudo ao Teófilo. Implorei que me ajudasse a dar fim naquela coisa. Armamos uma tocaia. Ele prometeu tirar uma foto. Precisávamos de alguma prova para a justiça… ou ao menos para a verdade.
Numa das noites, a criatura voltou. Um clarão. Dois tiros.
Silêncio.
Corremos até o corpo. Mas, ao se aproximar, Teófilo cambaleou. Sentiu uma dor aguda no peito. Caiu sem respirar.
Corri, peguei o jipe. O levei para o hospital. Era tarde demais.
Fiquei com a câmera. Revelamos as fotos. De 24, só uma importava.
Levei ao delegado. E a resposta?
— Fantasia boa, essa do seu amigo.
Falei das vítimas. Ele me cortou:
— Vá pra casa. Você parece doente.
Desde então, nunca mais vi a criatura.
Mas sobrou a maldita fotografia. Aquela única imagem que ninguém acredita ser real.
E é por isso que escrevo tudo isso agora. Porque quando o sobrenatural bate à porta… o mundo prefere fingir que não ouviu.
E eu… eu só queria esquecer.
Mas ele prometeu voltar.
E quando voltar… eu vou estar esperando.