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Belém do Pará, Bairro do Marco, 2003. Eu tinha 12 anos e a rotina das noites em casa era sempre a mesma: jantar quieto na cozinha, enquanto os sons da cidade morriam devagar lá fora. A mesa ficava próxima à porta de madeira que dava direto para o quintal — um espaço estreito, dividido entre um varal enferrujado e um velho depósito de ferramentas de meu avô.

Aquela noite, no entanto, parecia mais densa. O ar, mais pesado. A escuridão no fundo do quintal, mais profunda do que o habitual.

Estava comendo, distraído, quando uma sensação incômoda se instalou — aquele tipo de arrepio que vem do nada, como se o tempo tivesse parado por alguns segundos. Instintivamente, levantei o olhar.

E ali estava.

Uma figura parada rente ao muro. Alta. Imóvel.
Não era uma pessoa. Nem um animal. Era… ausência. Um corpo moldado do mais absoluto breu, como se a própria sombra tivesse tomado forma sólida. Aquilo não refletia luz — engolia.

Mas os olhos… os olhos eram o pior.
Duas esferas incandescentes, vermelhas como brasa viva, que perfuravam a escuridão com uma fúria silenciosa. Fixos em mim. Como se me estudassem.

Pisquei, respirei fundo, tentei achar alguma lógica para aquilo. Mas não era imaginação. A coisa se moveu.

Deu um passo. Depois outro.
Cada movimento parecia sugar ainda mais a luz do quintal, tornando tudo ao redor opaco, sem cor. O silêncio ficou espesso. E os olhos nunca desviavam.

Era como se o próprio medo ganhasse carne. E estivesse vindo me buscar.

Gritei. Um grito que rasgou o silêncio e trouxe minha avó correndo, apavorada. Apontei, trêmulo, para o quintal.
Ela olhou.
E congelou.

O ser ainda estava lá. Encostado no muro do vizinho, observando. Aqueles olhos agora nos encaravam a ambos — vermelhos, brilhando como faróis sangrentos em meio ao breu.

Trancamos a porta com força. Corremos para chamar os vizinhos. Eles vieram armados com lanternas, paus, pedaços de ferro. Vasculharam tudo. O quintal. O muro. O telhado.

Nada.
Nenhuma pegada. Nenhuma sombra. Nenhum som.

Mas nós sabíamos.
Tínhamos visto.

Aquilo não era deste mundo.
E tinha nos visto também.

Desde aquela noite, nunca mais sentei na mesa da cozinha. Não consigo encarar o fundo daquele quintal, não sem lembrar dos olhos fixos em mim.

Às vezes, quando a noite cai silenciosa demais e o vento para de soprar, juro que sinto aquela presença ali — parada, misturada às sombras. Esperando.

E sei que um dia, ela vai voltar.