Porto Alegre, Zona Sul, 1999.
Entre curvas sinuosas, ladeadas por bosques e morros encobertos por mato denso, fica a antiga Estrada do Rincão, que liga os bairros Vila Nova, Belém Velho e Lomba do Pinheiro. À beira da estrada, duas pequenas favelas resistem, separadas por quilômetros de solidão e floresta.
Foi na primeira delas, em uma casa simples, que morava Tereza, mulher de vida difícil, mãe solteira de dois pequenos: João Alberto, de 6 anos, e Maria Cecília, de 5. Tereza se sustentava como garota de programa, e, quase sempre, voltava para casa bêbada, exausta, e dormia sem dar atenção aos filhos. Quem cuidava das crianças, por compaixão, era a vizinha Dona Lurdes, já idosa, que fazia o possível para alimentá-los.
Mas numa tarde abafada de verão, um descuido mudou tudo.
João e Maria escaparam dos olhos de Dona Lurdes e foram caminhando até o acostamento da estrada. Fascinados com os carros que passavam, se afastaram cada vez mais… até que viram, entre árvores retorcidas, um portão de madeira escancarado.
Atrás dele, uma estradinha de pedra se perdia na mata.
E, no início da subida, sentada nos primeiros degraus de uma escada coberta de limo, estava uma mulher de vestido vermelho. Morena clara, cabelos negros e ondulados, um sorriso encantador.
Ela os chamou com um gesto:
— Venham, crianças. Preparei bolo e refrigerante.
Os dois, inocentes, subiram a escadaria. No topo, surgiu uma casa no estilo enxaimel, limpa, iluminada, com cheiro de aconchego. A mulher se apresentou como “Titia Dulce”, serviu-lhes um banquete de doces e brincou com eles até o anoitecer. E assim, quase sem perceber, João e Maria não voltaram mais para casa.
Na favela, a busca por eles durou alguns dias, mas foi esquecida pela polícia e ignorada pela mãe. Restou apenas o silêncio.
A nova vida
Dulce não era uma mulher comum. Antiga feiticeira, cercada de influências e segredos, conseguiu documentos falsos e adotou os dois irmãos como filhos legítimos.
Sua juventude parecia eterna: os anos passavam, mas ela mantinha a mesma aparência de trinta anos. Com carinho e riqueza, deu às crianças tudo o que jamais tiveram: escola particular, passeios, festas, viagens.
Para João e Maria, Dulce foi mãe em todos os sentidos. Na adolescência, apresentavam-na aos amigos com orgulho. Ela, cada vez mais bela e enigmática, participava das reuniões e confraternizações como se fosse parte inseparável da juventude deles.
O segredo do hospital
Já adultos, João e Maria foram advertidos pela mãe:
— Se um dia eu adoecer, levem-me apenas ao Hospital X….
Em 2012, numa noite qualquer, Dulce sofreu um mal súbito. Eles a carregaram até o hospital, confiantes de que logo se recuperaria. Mas o médico, após minutos de espera, trouxe a notícia:
— Sinto muito. Ela chegou sem vida… foi um infarto, causado pela idade.
Idade? Dulce parecia ter pouco mais de quarenta anos.
Quando o corpo foi revelado, os dois irmãos entraram em choque: deitada na maca estava uma anciã de mais de 150 anos, frágil, enrugada, irreconhecível. O médico lhes mostrou documentos emitidos em 1930, que revelavam a verdade: Dulce havia nascido em 1860.
Antes de partir, porém, ela deixara uma carta, guardada no cofre do hospital, pedindo que seus filhos mantivessem silêncio absoluto sobre sua verdadeira natureza.
O retorno à casa
Atordoados, João e Maria voltaram com amigos à antiga casa. Mas lá, outra revelação: o portão estava podre, a escadaria tomada pelo mato e a casa em ruínas, como se estivesse abandonada havia décadas.
Dentro, entre teias de aranha e entulhos, apenas os quartos das crianças permaneciam intocados, com pertences de infância ainda ali.
O choque os fez compreender: algo sobrenatural havia moldado toda a sua infância.
O legado de Dulce
Nos meses seguintes, os irmãos descobriram que herdaram a vasta propriedade da mãe misteriosa, incluindo hectares de mata. Entre documentos e relatos, nada explicava de fato quem ou o que fora Dulce.
Feiticeira? Fantasma? Ser imortal?
Para João e Maria, a conclusão foi outra:
Apesar dos segredos, dos mistérios e do terror final, Dulce não foi uma bruxa maldita.
Ela os salvou de uma vida de miséria, deu-lhes carinho, educação e futuro.
Na lembrança dos dois irmãos, para além de qualquer lenda, ela permaneceria para sempre como sua verdadeira…
Fada Madrinha da Estrada do Rincão.