Sonho com Cláudia quase todas as noites. Sempre o mesmo jardim: interminável, úmido de orvalho, com lagos que refletem um céu tão azul que chega a doer na memória. Os chafarizes lançam filetes de água límpida, como se tentassem lavar o que ficou em mim. Pássaros pousam mansos em nossas mãos — pequenos milagres emplumados, gotas divinas que não pedem nada, só carinho.
Assombro? Loucura? Chamem como quiserem. Eu chamo de sobrevivência.
Nunca mais me casei. Não consegui desejar outro sorriso, nem repetir a palavra “amor” sem sentir que roubava algo dela. Vivo esperando. E em breve, sei… nós dois nos veremos de novo, em algum outro lugar que não arda mais.
SÃO PAULO, 31 DE JANEIRO DE 1974
Era uma noite de quinta-feira, mas poderia ter sido um domingo, um feriado, qualquer data histórica do mundo. Para mim, o mundo inteiro estava ali: Cláudia e eu, em nosso pequeno apartamento, celebrando nosso noivado. Tínhamos 25 anos e a ilusão gostosa de que nada poderia nos roubar o futuro.
A champanhe era sobra do Ano Novo. O LP girava, Roberto Carlos cantava “Amada Amante” como se tivesse composto só para nós dois. Cláudia ria com os olhos, não só com os lábios, e isso bastava. Falávamos da Copa, da TV colorida, dessas bobagens que viram memórias sem que a gente perceba.
Quando a madrugada se rendeu ao dia, eu disse:
— Pela manhã te levo ao trabalho.
Ela encostou a testa na minha e sussurrou, brincando:
— Vai ser bonito chegar como noiva, não é?
Eu ri. Meu Fusca azul 73, novinho, virou carruagem naquele instante.
O dia seguinte nasceu quente. Eram 8h15 do dia 1º de fevereiro quando estacionei diante do prédio. Ela ajeitou os cabelos, suspirou leve, como se estivesse prestes a começar uma vida inteira.
— Que noite maravilhosa! Obrigado por você existir — eu disse, sem medo de parecer exagerado.
— Não exagere, Toni… você também é ótimo. Me busca mais tarde? — perguntou, sorrindo aquele sorriso que fechava o pulmão da gente.
— Pode contar com isso. Bom dia, meu amor.
Ela caminhou, elegante como quem tem o futuro garantido. Antes de entrar, virou-se. Sorriu outra vez. Acenou. E sumiu pelas portas do Edifício Joelma.
Foi a última vez que a vi inteira.
Depois disso, ouvi gritos, fogo, notícias, pranto. Não pude salvá-la. Nunca consegui voltar para buscar ninguém.
Hoje, quando fecho os olhos, ela me espera naquele jardim. Talvez seja só sonho. Talvez seja o último passo antes de reencontrá-la. O mundo chama de tragédia, manchete, estatística. Eu chamo de saudade.
E sei que, quando chegar a minha hora, não vou encontrar portas de um edifício em chamas.
Vou encontrar o sorriso dela, virando-se para mim mais uma vez.
E eu, enfim, poderei dizer:
— Cheguei para te buscar, meu amor.



