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Meu nome é Getúlio, e já estava com meus 60 anos quando tudo começou. Trabalhava como porteiro em um importante edifício do Centro, mas morava em um município vizinho e dependia de um ônibus de horário restrito, com ponto de partida na Rua Chaves Barcellos.

Bem em frente à parada desse ônibus, havia um bar bastante movimentado: mesas do lado de fora, amplo espaço interno e música eletrônica constante. Comecei a frequentar esse bar enquanto esperava meu ônibus, pois era melhor do que ficar quase uma hora em pé na fila — e, afinal, eu não era casado.

Com o tempo, tornei-me um cliente assíduo. Ganhei até crédito, de acordo com os pagamentos mensais. Era meu refúgio: enquanto outros encaravam o estresse do ponto de ônibus, eu tinha ali um porto seguro. O bar só lotava de quinta a sábado, além de vésperas de feriado — fosse inverno ou verão.

A parte interna era requintada e confortável. O ambiente, frequentado por trabalhadores e um público diverso, era surpreendentemente tranquilo — jamais presenciei uma briga sequer.

Dois anos se passaram. Numa segunda-feira, às 19h15, pedi uma cerveja, como de costume. O bar estava calmo, quase vazio. Após o primeiro copo, senti uma forte cãibra no tórax… e apaguei.

Não sei quanto tempo passou. Acordei achando que havia apenas cochilado. Mas algo estava estranho. Meus ouvidos se enchiam de vozes altas, misturadas a uma música eletrônica ruim. O bar estava… lotado. Muito lotado. Mal dava pra se mexer. Eu continuava na mesma mesa, próximo à porta, mas não via mais a rua — só uma massa de gente.

Minha visão parecia embaçada. Algumas pessoas eu via com nitidez. Outras, não. E então comecei a enxergar… criaturas. Homens e mulheres com rostos deformados, alguns em decomposição, outros com caveiras expostas. Vi gente vestida com roupas de outras épocas. Achei que era uma festa temática — mas percebi que só eu parecia notar essas coisas.

Pensei no ônibus. Com esforço, saí do bar. A rua estava deserta. Nenhuma outra linha de ônibus passava. Somente o bar pulsava de vida — ou quase isso.

Lá fora, nas mesas, prostitutas conversavam com figuras ainda mais estranhas. Vi homens com cabeças de lobo, outros de boi. Alguns tinham torsos demoníacos. Ninguém se incomodava. As criaturas não demonstravam hostilidade, apenas circulavam, alheias a tudo — até mesmo a mim.

Por um instante, achei que estivesse bêbado. Mas um copo não era suficiente para isso. Então, um homem que eu nunca vira antes saiu do bar e me chamou:

— Seu Getúlio! Venha, vamos entrar!

— Desculpe, mas não lembro do senhor — respondi.

— Nem poderia. Mas muita gente aqui já lhe conhece faz tempo. Meu nome é Pedro.

— Me desculpe, seu Pedro, mas não entendo nada. Achei que tivesse apenas cochilado… Perdi meu ônibus e não vi o bar encher desse jeito. Tem alguma festa?

Notei que pessoas das mesas acenavam para mim, como se me conhecessem. Pedro sorriu:

— Viu? Tem muita gente que lhe conhece. Lá dentro tem mais.

— Estou vendo que perdi o ônibus… e pelo jeito, vou passar a noite preso aqui!

Pedro percebeu minha confusão e resolveu ser direto:

— Seu Getúlio… veja. A maioria dos que estão aqui são como nós. Os outros, mais nítidos, são os vivos.

— Como assim? Que história é essa?

— Tente se lembrar… O senhor morreu.


Considerações

Getúlio morreu subitamente, vítima de um infarto fulminante. Não sentiu o tempo passar. Entre o ataque e seu “retorno” à mesa do bar, sua memória sofreu um apagão — fenômeno comum, mas não universal.

A “cãibra” que ele sentiu foi o início do infarto. Seu corpo foi removido, velado, sepultado. Mas seu espírito, ao despertar, foi atraído para o local de maior afinidade emocional: o bar. Ali, acreditou que só haviam se passado alguns minutos.

Bares e locais similares, apesar de comuns e socialmente aceitos, funcionam como pontos de atração para espíritos desencarnados — especialmente os que ainda estão presos aos vícios da vida terrena. A bebida, o cigarro, a euforia do consumo — tudo isso oferece uma espécie de “alimento energético” para entidades espirituais inferiores.

As criaturas com formas animalescas e roupas de épocas distantes são comuns nos agrupamentos umbralinos, que se aproveitam desses ambientes. Quando alguém bebe ou fuma nesses lugares, muitas vezes o faz acompanhado — de forma invisível — por espíritos que partilham do mesmo vício, drenando suas energias. Em casos mais graves, esses laços podem originar obsessores espirituais.


Obs.: O bar ainda existe na Rua Chaves Barcellos, em Porto Alegre. Durante a pandemia, manteve-se aberto, mesmo com restrições. Mas à noite, ao passar por lá… evite encarar muito tempo para dentro.

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