Curitiba seguia indiferente.
As avenidas largas, os ônibus apinhados na Linha Verde, os prédios espelhados — tudo pulsava vida, enquanto Rogério desmoronava por dentro.
As dívidas lhe pesavam como correntes.
Carla, a esposa, há anos afastada do mercado de trabalho, tentava sorrir, mas a casa já não era lar: era trincheira. Cada palavra trocada terminava em silêncio ou em explosão.
No trabalho, o golpe final.
Rebaixado, salário reduzido, a humilhação corroía. Até os colegas mais jovens já o olhavam como quem observa um homem derrotado.
E, ao voltar para casa, era ainda pior.
Na penumbra do quarto, vinham os sussurros:
— Você não serve para nada. Acabe logo.
A INFESTAÇÃO
As noites carregavam um peso insuportável.
O ar gelava, a cama se tornava um túmulo.
Rogério acordava sufocado, sentindo dedos frios apertarem sua garganta.
Sombras deslizavam pelo corredor.
O cachorro, antes dócil, agora rosnava para o vazio.
A filha, de apenas 12 anos, começou a gritar no meio da noite, atormentada por sonhos com homens sem rosto que riam como hienas.
O que antes era depressão, agora era assombro.
Uma horda invisível se alimentava dele — desafetos antigos, espíritos vingativos, consciências presas no ódio.
E quanto mais Rogério pensava em desistir, mais eles se fortaleciam.
A TENTAÇÃO
Num domingo cinzento, após mais uma briga por causa das contas, Rogério saiu sem rumo.
Andou pelo Passeio Público, observando crianças correndo, idosos jogando cartas, casais rindo.
Mas dentro dele só havia um grito:
— Pule. Pule logo.
Na beira do lago, inclinou-se.
A água não refletia seu rosto, mas uma massa de sombras retorcidas, bocas abertas em gargalhadas sem som.
Ele quase se entregou.
Foi apenas a lembrança da filha —
“Pai, você prometeu me levar ao Jardim Botânico” —
que o puxou de volta.
O TERREIRO
Naquela semana, Carla insistiu:
— Vamos ao terreiro. Você precisa de ajuda.
Desesperado, ele aceitou.
No Cajuru, um barracão simples exalava cheiro de ervas queimadas. Atabaques ressoavam como corações ancestrais.
Rogério entrou cabisbaixo. A médium, de olhar profundo, o recebeu:
— Você não está sozinho. Uma multidão se alimenta da sua dor. Mas hoje, se permitir, vamos quebrar essas correntes.
O ritual começou.
Ele chorou como nunca.
Sentiu mãos invisíveis sendo arrancadas de seu pescoço, ouviu gritos que não vinham dele, mas ecoavam dentro da mente.
A cada ponto cantado, a cada batida do tambor, algo escuro se desfazia.
No fim, exausto, sentiu-se leve.
A médium lhe entregou uma guia e uma vela acesa:
— A guerra não terminou. Mas agora você conhece a verdade. Se escolher a luz, a escuridão não terá onde se prender.
O VIRAR DO JOGO
Na volta para casa, Curitiba já não parecia zombar dele.
As luzes da cidade não eram ameaças, mas sinais de caminho.
O vento frio não congelava, purificava.
As dívidas ainda existiam.
O trabalho ainda pesava.
Mas Rogério agora sabia: sua luta não era apenas contra papéis e números.
Era contra forças invisíveis.
E pela primeira vez, ele decidiu: não seria vencido.